segunda-feira, janeiro 27

A ironia da vida



- Já não tenho nada. Nada. Absolutamente nada.
- …
- Já não tenho um corpo para viver. Para poder viver.
- O problema não é o teu corpo.
- Não é?! Já olhaste bem para mim? Por acaso já reparaste que não me consigo mexer? Já viste este pedaço de merda que me tornei? Já reparaste que este não sou?
- O teu problema não é o teu corpo. O teu problema é nunca teres aprendido a viver para além dele. Para ti sempre foi mais importante uma ejaculação do que uma boa conversa. Sempre preferiste aquilo que é mais fácil, por isso tudo o resto era apenas um apêndice que de vez em quando servia para alguma coisa.
- ...
- Pois bem, agora é ao contrário. Os papéis inverteram-se. A tua personalidade é tudo o que te sobra e o teu corpo é apenas um parasita que consome a tua carne e a tua esperança.
- Talvez tenhas razão… mas não estás completamente certa.
- Não?
- Não. Estás errada quanto à esperança. Já há muito que a perdi, por isso nada resta dela para ser consumido.
- …
- Mas não tenhas pena de mim… Não te atrevas a ter pena de mim! Porque nisso fui vitorioso! Fui eu quem ganhou essa batalha! Acabei com ela antes que a roubassem ou que também ela acabasse comigo.
- Eu não tenho pena de ti. Tenho amor por ti.
- …
- …
- Ao acabar com ela ganhei alguns segundos. Sabes o quanto é importante alguns segundos quando se está a morrer? Não sabes… mas são. Realmente, são.
- Sei.
- Não sabes. Não podes saber. Não estás a morrer.
- Estou. Estou a morrer por ti o quanto tu estás a morrer de mim. Por isso sim, sei. Sei à minha maneira, tal como tu sabes à tua.
- Que grande ironia da vida quando um par ou dois de segundos se tornam tão importantes quanto umas gotas num deserto só porque o final da linha está bem diante de nós.
- …
- Um par ou dois de segundos que na semana passada desejava que passassem a correr por mim e agora dava tudo para os ter. Que macabra é esta triste ironia de querer viver e não puder.

 

3 comentários:

Andreia Morais disse...

Este discurso está qualquer coisa!
«Que grande ironia da vida quando um par ou dois de segundos se tornam tão importantes quanto umas gotas num deserto só porque o final da linha está bem diante de nós». Adorei esta parte

Beijinhos*

Andreia Morais disse...

Precisamente, só participa na praxe quem quer. O problema são mesmo aquelas pessoas que não têm respeito pelo traje, pela tradição e pelos outros, mas isso não é culpa da praxe, é culpa da falta de caráter.

Não tens que agradecer :)
Beijinhos*

A Gata de Saltos Altos disse...

Bem... impressionantes as tuas palavras!

http://agatadesaltosaltos.blogspot.pt/