sexta-feira, maio 24

Sem resposta (3)

Filomena ia sempre caminhar ao final da tarde. Numa rotina simples, sem nada de extraordinário a não ser a natureza que a envolvia, por fora e por dentro. Após os longos e custosos minutos que separavam a casa onde morava do parque, ela apaziguava o esforço remanescente que percorria o seu corpo, sentando-se no banco de madeira e perdendo-se nas frases do livro que levava consigo. Nada fora do comum costumava a acontecer. As pessoas passavam e apenas o silêncio da sua vida parecia reparar nela.
Pedro, chegou, um dia, e sentou-se ao lado de Filomena. Nada falou. Nada foi dito ou expressado. Ela continuou, igual - perdida no silêncio e nas frases que teimava em ler e em reler. Ele, continuava o mesmo estranho que se sentara no banco, ao seu lado.
No dia seguinte, Filomena estava sentada no banco usado e desgastado pelas pessoas, pela chuva, pelo vento, pelo sol e, sobretudo, pelo tempo. Pedro chegou. Filomena desviou o olhar das páginas que acabara de ler pela décima quarta vez e fitou-o. Ele olhou-a de volta, mas nada disse. Permaneceram, ali, os dois tão estranhos e tão distantes como o céu e a terra. Filomena acabou de ler o mesmo par de páginas que lera no dia anterior, fechou o livro, guardou-o, levantou-se e foi-se embora.
Passou-se uma semana e Filomena continuava ainda barrada no mesmo par de páginas. Pedro chegou e os olhares voltaram a cruzar-se como havia acontecido nos dias anteriores. O ciclo de silêncio parecia perpetuar-se até que Pedro interrompeu aquela ausência de palavras.
- Desculpa interromper-te, mas tenho reparado no livro que estás a ler e que...
- Sim... podes continuar, não há problema.
- Bem é que tu ainda estás nas mesmas páginas.
Filomena não lhe respondeu, pelo menos não de imediato. Por momentos o silêncio envolveu-os de novo. Pedro silenciosamente, repreendia-se por provavelmente a ter incomodado com aquela pergunta. Afinal de contas, ela era uma estranha e, agora, aparentemente, uma estranha bastante esquisita.
Quem é que lê um livro durante uma semana e não avança nas folhas? Porque é que ela lê sempre aquelas páginas?
- Deves estar a achar mil e uma coisas de mim. Se calhar, na tua mente, até já me atribuíste alguma doença qualquer... - disse ela com um certo gozo que lhe percorria o corpo. Tinha a sua piada imaginar aquilo que ele deveria estar a pensar dela.
Filomena parou por breves segundos e esperou até ter reunido as palavras certas. Depois deixou-as sair.
- Leio e releio as mesmas frases, os mesmos parágrafos, as mesmas páginas repetitivamente, vezes sem conta no anseio e, de certa forma, na esperança que o que nelas está se torne verdade. - para por momentos e aguenta as palavras na sua boca. - Provavelmente depois do que te acabei de dizer, deves estar achar-me ainda mais esquisita. - sorri suavemente, por dentro e por fora.
- Não te acho esquisita, nem maluca ou coisa parecida... apenas fiquei curioso. - respondeu-lhe ele à pergunta disfarçada que antecipava a ideia errada com que ela ficara dele.
Por esta altura, Filomena devia estar a achar que lhe tinha causado má impressão e que a sua resposta ainda o tinha deixado mais mergulhado no arrependimento de lhe ter feito aquela pergunta e que devia era ter ido embora antes de tentar sequer meter conversa com ela, mas nada disso era verdade.
- A verdade é que não leio simplesmente por ler. Leio para poder ser quem eu não tenho coragem de ser à luz do dia ou até mesmo às escuras, diante dos olhos que passam por mim e que nunca me vêem e, até mesmo de ti, que não te conheço e que as únicas coisas que partilhamos, até hoje, foram o mesmo banco, a mesma paisagem e o  mesmo ar.


 

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